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  • Foto do escritorHM Macahé

Episódio 3 - Viriato não está Callado!

Atualizado: 26 de abr. de 2021



Ouça o episódio:



Brasil, segunda metade do séc. XIX. Estamos no segundo Reinado e o Rio de Janeiro é a capital do Império. A música européia, com seu universo de ritmos, danças e contra-danças, já era comum nos teatros e salões da aristocracia daqui. Mas nem tudo vinha dos salões nobres. Valsas, Polcas, Schottishes, Mazurcas, Tangos, Habaneras, Quadrilhas, compunham um vasto repertório, com músicas que tinham como características a leveza, brevidade e despretensão estética. Neste formato se consolidou o chamado Repertório Ligeiro. Não se deve confundir, aqui, a música ligeira com a música clássica. Eram músicas tocadas na forma de reduções de óperas, nas operetas, danças de salão, teatros de revista e recitais nos intervalos de óperas e peças de teatro. E tudo isso misturado com que o Brasil já vinha produzindo de música desde o século anterior: as nossas Modinhas, com seu lirismo poético, e os Lundus, das umbigadas e batuques sincopados, já sob influência afrobrasileira.


Apresentação de polca no final de um espetáculo no Theatro Santa Isabel, em Macaé. Anúncio do Jornal Monitor Macahense dias antes do evento, realizado em 25 de abril de 1866. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.


Por essa época, chegam ao Brasil, os dois nomes que difundiram o uso do piano por aqui: Arthur Napoleão, que também era editor de partituras, e Luiz Chiaffarelli, conhecido por ter sido professor de Guiomar Novais. Não por acaso, o Rio de Janeiro ficou conhecido como a cidade dos pianos. Mas apesar da primazia ocupada por este instrumento harmônico indiscutivelmente completo, solista e acompanhador, o piano pertencia às famílias mais abastadas, reservado aos salões e de difícil acesso às camadas médias e baixas da população. Neste contexto, a Flauta, por ser leve e fácil de carregar, começa a se difundir, transitando de seu universo erudito, para os espaços de rua com atuação de músicos amadores, com seus instrumentos de corda, como os violões e Cavaquinhos, vindo a constituir, com a flauta, a formação dos primeiros grupos de uma nova expressão musical brasileira de caráter urbano: o Choro. Eram os grupos de "Pau e Corda", pois ainda se usava a Flauta de Ébano.


Viriato

Apesar das afirmações que foi a partir dos anos de 1870 que esses grupos começaram a surgir, é em 1853 que Melo Morais Filho, ao falar da festa do divino no Rio de Janeiro em seu livro "Festas e Tradições Populares do Brasil", explica que na Barraca do Teles ou Barraca das Três Cidras do Amor, com suas várias atrações artísticas, dentre elas a apresentação teatral. Diz o seguinte: "... O teatro do Teles era iluminado a velas e a azeite; pagava-se 500 réis de entrada, incluindo neste preço o bilhete da rifa; tinha, além da orquestra para a grande divisão do cenário, uma outra de violão, flauta e cavaquinho, que tocava oculta, quando dançavam os bonecos…". É neste contexto que nasce em Macaé, em 1851, Viriato Figueira.


Viriato Figueira da Silva era filho de escravos e não se têm registros de quando e como foi para o Rio de Janeiro. Estudou Flauta Transversal e Saxofone no Conservatório de Música do Império com o professor Joaquim Antônio da Silva Callado Jr. (1848 - 1880), de quem também se tornou grande amigo. Prova desta amizade foi a parceria em diversos trabalhos musicais que realizaram juntos. E já já eu conto algumas obras que resultaram desta parceria.


Viriato integrou a Orquestra do Teatro Fênix Dramática do Rio de Janeiro, dirigida pelo maestro Henrique Alves de Mesquita (1830 - 1906), que foi professor de Callado Jr. no mesmo Conservatório de Música e que também eram amigos. Vale lembrar que Henrique Alves de Mesquita foi compositor, regente, organista e um dos mais antigos compositores do universo do Choro. Compôs polcas, tangos, operetas, quadrilhas, valsas e lundus. Teve uma expressiva atuação na música de entretenimento, sendo autor de muitas operetas encenadas nos teatros mu­sicais. Passou nove anos vivendo em Paris com bolsa de estudos concedida pelo impe­rador D. Pedro II. É considerado o criador do Tango Brasileiro por seu bi­ógrafo, Baptista Siqueira (1970). Lembrando que o Tango Brasileiro é anterior ao Argentino.


Henrique Alves de Mesquita e Callado Jr.


E já que foi mencionado o Tango Brasileiro, é importante salientar que aquelas músicas e danças européias, muitas delas, foram tomando formas diversas aqui no Brasil, sem esquecer do ritmo das umbigadas que já existia há muito tempo por aqui. O Maxixe é uma dessas formas, chamado também de Tango Brasileiro, já que era um nome mais aceitável numa fase onde esta nova manifestação popular sofria bastante preconceito. É que o Maxixe foi uma dança popular tipicamente carioca, que adquiriu contornos próprios também na forma de tocar, mas sem fugir das influências da Polca. Dentre os gêneros musicais europeus mencionados, vale destacar a Polca, dança camponesa da região da Boêmia, antigo império Austro-Húngaro, que se tornou uma febre de tão famosa que ficou por aqui. Chegou no Brasil em 1845 e foi considerada o Rock do séc.XIX. É que a Polca revela a perfeita identificação do gênero com o que já se praticava aqui. É uma dança de compasso binário, cadenciado, andamento alegre e coreografia picante, elementos familiares do brasileiro.


Falamos, lá no início, sobre o repertório ligeiro, que era o que predominava. Também era comum, na época, tocar as chamadas Fantasias. Viriato e Callado por várias vezes tocaram Fantasias nos intervalos de operetas. Mas calma aí! Fantasia? Como assim? Fantasia refere-se a uma idéia musical imaginativa e não a um gênero. São improvisos feitos sobre um tema melódico, mas nunca fugindo dele. Meu amigo Rubem Pereira, macaense, músico, memorialista e pesquisador do Choro, vai nos contar melhor essa história:


Programa de concerto com o repertório ligeiro. Jornal do Commercio, 26/01/1872. Ed. 26. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.


Rubinho: "Essas fantasias, eles tocavam muito... são transcrições de trechos de óperas, de árias de óperas. Eles tocavam fantasias das óperas do Verdi, as do Mozart. E geralmente essas fantasias eram escritas de forma virtuosística, entendeu? É bom lembrar que nesse tempo, no Rio de Janeiro, estava morando o maior flautista do mundo, o Reichert. Quando ele chega no Rio (era o cara contratado pelos reis da Europa) Callado se descobre no mesmo nível dele… e Viriato, que andava com Callado, se viu também. Então virou um trio muito forte a presença desses caras. E o desafio de tocar repertório virtuosístico fazia com que eles tocassem essas fantasias. E muitas vezes eram arranjos deles. Tinham muitas delas que eram feitas por eles mesmo… esses caras (Callado e Viriato), na época, eles tocavam tanto com a nascente música brasileira que eles estavam fazendo nascer e o professor deles, que era o Henrique Alves de Mesquita, quanto também frequentavam salas de concerto, os grande teatros da cidade. Tocavam com as orquestras. Então eles foram muito diferenciados, Viriato e Callado."


Viriato trabalhava profissionalmente com quase todos os instrumentos de sopro, e dava aulas em diversas instituições de ensino na Corte. Foi diretor de Harmonia da Sociedade Filarmônica Niteroiense em 1880, compositor de diversas obras entoadas nas conferências, como a polca "Macia", dedicada a José do Patrocínio, "Carnaval do Brasil'' e "Guarany Saudação", entre outras. Chegou a reger 200 músicos em uma conferência em homenagem a Joaquim Nabuco (Gazeta de Notícias, 21/05/1881, ed. 00136, p. 4). Em recital organizado pela Sociedade Brasileira contra a Escravidão, que contou com a presença de ilustres convidados da sociedade carioca, membros de clubes e sociedades abolicionistas, Figueira tocou "Carnaval do Brasil", acompanhado pelo pianista Arthur Camillo. Segundo a crítica do jornal, “essa bela produção foi interrompida por bravos e coroada por flores e aplausos gerais”. (GAZETA DA TARDE, 1880, p. 1). O artista também tinha suas peças vendidas pelas casas de impressão. Foi uma fase também onde o mercado de editoração de partituras estava em alta, pois ainda não existia a gravação sonora e muito menos a rádio, o que viria a se tornar realidade somente nas primeiras décadas do século seguinte. Além da comercialização de partituras, se tornavam comuns as vendas de instrumentos e também a divulgação de aulas particulares.


Outro fato curioso sobre Viriato é que, quando da morte prematura de seu mestre Callado, foi nomeado em seu lugar, para dar aulas no Conservatório, Augusto Paulo Duque Estrada Meyer (Gazeta de Notícias, 24/03/1880). Alguns dias depois, Viriato, em uma nota assinada por ele no mesmo jornal, questiona a nomeação de Meyer, argumentando que este tinha emprego de guarda livros na Casa Arthur Napoleão, e solicitou ao Conservatório realizar um concurso de flauta, sugerindo, inclusive, os pontos da prova: “1º: Argu­mentação entre os candidatos da harmonia propriamente dita. 2º: Leitura à primeira vista de uma ou mais peças concertantes. 3º: Desenvolvimento de um thema sob a forma de fantasia” (Gazeta de Notícias, 29 e 30 de março de 1880 - edição 88). É, amigos! Viriato não pegou leve.


Segundo outro flautista, Pedro de Assis, Viriato “empreendeu com grande êxito artístico e financeiro uma turnê artística às capitais nortistas alguns anos depois de ter feito a mesma digressão o maior flautista do mundo, o belga André Mateus Reichert”, já citado pelo Rubem. Ele hegou ao Brasil em 1859 e ajudou a difundir o sistema Boehm, criado em 1832 pelo flautista e inventor alemão Theobald Boehm, que aprimorou a digitação da Flauta Transversa de prata. Este sistema foi muito difundido no Brasil e, apesar dos rumores de que foi Reichert o primeiro a trazer a novidade para cá, foi o italiano Achille Malavasi, em 1851, e portanto, 8 anos antes da chegada de Reichert, o verdadeiro responsável por introduzir a Flauta Boehm no Brasil.


Partitura de 'Só para Moer'


Viriato obteve grande sucesso como compositor da polca "Só Para Moer", editada em 1877 por José Maria Alves da Rocha e posteriormente por Artur Napoleão, obra até hoje tocada pelos chorões. Foi o pioneiro no Brasil como solista de saxofone e considerado, junto com seus antecessores Henrique Alves de Mesquita e Joaquim Callado, um dos pais do Choro. Faleceu muito cedo, vítima de uma tuberculose pulmonar, em 24 de abril de 1883, talvez já com seus 32 anos, momento em que o movimento abolicionista estava em pleno vapor, sendo homenageado por algumas organizações abolicionistas. Em 17 de dezembro do mesmo ano, por iniciativa de alguns músicos da roda de Viriato, realizou-se um concerto em benefício da construção de seu túmulo, no Cemitério de São Francisco Xavier. E quase dois anos depois, em 27 de julho de 1885, foram depositados no mesmo jazigo os restos mortais do seu grande amigo e mestre.


Depois de toda essa história, com toda a modéstia, deixo minhas saudações a estes ilustres músicos, além do Viriato, por ser macaense, que não muito longe daqui, se dedicaram a arte da música, souberam filtrar muito bem toda a variedade de repertório da época criando uma nova linguagem, como afluentes que deságuam num grande rio que se chama Choro. E me arrisco a dizer que o Choro, com tantos elementos musicais que conseguiu reunir, é o nosso Jazz.



Um salve à todos os músicos dessa primeira geração do Choro:


Henrique Alves de Mesquita

Joaquim Antônio da Silva Callado Jr.

Viriato Figueira da Silva

Ernesto Nazareth

Chiquinha Gonzaga


Com destaque também para:


Capitão Miguel Rangel (flauta)

Saturnino (violão)

Juca Vale (violão)

Anacleto de Medeiros (regente, instrumentista)

Galdino Barreto (cavaco)

Mário Álvares da Conceição (cavaco)

Ventura Careca (violão)

Baziza (cavaco)

Sátyro Bilhar (violão)

Irineu de Almeida (oficleide)

Quincas Laranjeiras (violão)



Fontes de consulta:

  • Hemeroteca da Biblioteca Nacional

  • Dicionário Cravo Albim da MPB

  • Wikipédia

  • Instituto Moreira Salles

  • Arquivo Pixinguinha

  • Livro "Festas e Tradições Populares do Brasil" - Melo Morais Filho.

  • A música ligeira para flauta na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro: breve panorama a partir de uma pesquisa hemerográfica, de Paula Martins.

  • Transmissão musical entre flautistas do século XIX e início do século XX: uma pesquisa nos periódicos do Rio de Janeiro - Luciana Fernandes Rosa

  • Revista Transversos - Música, Docência e Letras: no caminho de liberdade de Francioni de Souza - autoria de Sirlene Ribeiro Alves.

  • Blog da Fritz Dobbert - fantasia e rapsódia: além dos concertos.



Fundo musical:


Obs.: E antes de falar sobre nosso fundo musical de hoje, gostaria de cominicar-lhes a nova abertura do podcast, como vocês já devem ter percebido. Atendendo a pedidos, encurtamos a introdução.


  • Polca "1867", de Henrique Alves de Mesquita, executada pela Orquestra de Câmara sob a regência de Milton Calasans. Compõe a coleção de discos "Músicas Imperiais", 1970.

  • "Polca em Dó n°1", composição de Viriato Figueira e interpretada por Luciana Rabello e Maurício Carrilho. Faz parte da coletânea "Princípios do Choro - Vol. 2, lançado em 2002 pela Acari Records.

  • Tango "Tenebroso", composição de Ernesto Nazareth, interpretado pelo casal Rosivaldo Cordeiro e Amarande Laffon no álbum "Métissage - les origenes du Choro.

  • Annen-Polca Op. 117, de Johann Strauss II, tocada pela Wiener Philarmoniker e regência de Daniel Barenboim.

  • Fantasia sobre o tema de "Carinhoso", composição de Pixinguinha e executada pelo flautista Altamiro Carrilho no disco "Encontro dos mestres do Choro", gravado ao vivo no Palácio das Convenções do Anhembi, São Paulo, em 02/04/1977.

  • Polca "Macia", de Viriato, tocado nesta gravação como Choro, por Luciana Rabello e Maurício Carrilho no disco Princípios do Choro - Vol. 2, já mencionado.

  • Polca "La Sensitive", de Matheus A. Reichert. Essa música faz parte de um disco raro chamado "Afinidades Brasileiras", de 1985, onde a flautista Odette Ernest Dias e a pianista Elza Kazuko tocam composições do flautista belgo que, além do Rio de Janeiro, andou pelo Brasil afora e registrou em suas músicas todos as impressões de suas experiências. Nesta música, por exemplo, ele toca a polca de duas formas: da forma mais tradicional e da forma como aprendeu com nossos mestres Callado e Viriato.

  • Em penúltimo lugar, a Polca "Só Para Moer'', de Viriato. Esta foi a primeira gravação realizada pela casa Edison em 1904 e executada pelo flautista e contemporâneo de Viriato, Patápio Silva.

  • E finalizando, a música "Lundu Característico", de Callado Jr., Com arranjos de Maurício Carrilho e executado por Toninho Carrasqueira. E esta gravação você encontra no disco "Joaquim Callado, o Pai dos Chorões" - Vol.3, também da Acari Recs.



Agradecimentos: Agradecimento especial ao amigo Rubem Pereira que, além de pesquisador e memorialista, é poeta e chorão apaixonado. E já combinamos que, em ocasiões distintas, ele estará me ajudando com suas valiosas informações para enriquecer o conteúdo de nossa trabalho. Gratidão meu camarada!!



E vale lembrar:


  • Segundo Rubem Pereira, muitos consideram erroneamente a composição "A Flor Amorosa", de Callado, como primeiro Choro, sendo que ela mantém suas qualidades de uma polca ligeira. Ao contrário, ele afirma que este mérito pertence a Só Para Moer, que já se apresenta como uma polca lenta e com traços de uma nova sonoridade, legando ao macaense Viriato o título de pai do Choro.


  • O pandeiro, instrumento hoje em dia comum na formação dos grupos de Choro, não fazia parte das rodas iniciais, sendo introduzido pela primeira vez, nos anos 20, época da radiodifusão e da ascensão do Samba como outro gênero musical popular. Figuras como João da Baiana e Alcebíades Barcelos, o Bide, inventor do primeiro surdo de balde de manteiga, introduziram o pandeiro nas rodas de Samba e Choro, provando ser este Instrumento o elo entre os dois gêneros. Bide também introduz percussões usadas nos terreiros como se pode observar nas gravações do "Gente do Morro", grupo do flautista macaense Benedito Lacerda. Inclusive Benedito aparece cantando em algumas músicas.

Considerações finais:


Então é isso, amigos, vamos nos despedindo por hoje. Espero que tenham gostado deste episódio. No próximo encontro, você vai conhecer um lugar que já foi conhecido como o "Palácio dos Mendigos". É verdade! Será um episódio mais curto, e você vai saber o que aconteceu na época e em que se transformou o local anos depois. Combinado assim? Eu não vou esquecer não, hein!! Então tá bom. Espero vocês no próximo episódio. Um grande abraço à todos!!



FIM.


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