HM Macahé
Episódio 26: Nos Trilhos da Música na Macaé Ferroviária.
Atualizado: 31 de ago. de 2021

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É inegável o fato de que a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, transformou radicalmente a vida em sociedade, em vários aspectos: nas relações de trabalho, de consumo, familiares e no comportamento dos indivíduos. Se por um lado, o progresso tecnológico estampava no peito dos capitalistas o orgulho das novas descobertas e da posse de novas máquinas, por outro frustrava os corações de uma enorme massa de trabalhadores pauperizados jogados à própria sorte e levados a se enquadrar numa nova realidade. Mas a grande produção também precisava de um sistema de escoamento que estivesse à altura da dinâmica produtiva.
A Ferrovia
A tração à vapor que transformaria completamente os sistemas de transportes, desenvolveu-se nos primeiros anos do século XIX. O aumento do volume da produção de mercadorias e a necessidade de transportá-las, com rapidez, para os mercados consumidores, fizeram com que os empresários ingleses dessem apoio a George Stephenson, que apresentou sua primeira locomotiva em 1814. Em associação com seu filho, Robert Stephenson, fundou a primeira fábrica de locomotivas do mundo e foi o primeiro que obteve resultados concretos com a construção de locomotivas, dando início à era das ferrovias. A novidade teve logo aplicação nas minas inglesas facilitando o acesso às profundas galerias. A primeira linha férrea propriamente dita, com 25 milhas de extensão, ligou Stockton a Darlington, começando a operar em 1825 com transporte de cargas. O primeiro serviço ferroviário regular de passageiros e cargas, com horários de chegada e partida fixos, começou a operar em 1830, entre Manchester e Liverpool. A partir desta data o transporte ferroviário se espalhou por toda a Europa. Apesar de encurtar distâncias e facilitar as comunicações, o novo meio de transporte não superou rivalidades. Os vários países a adotarem a ferrovia o faziam com bitolas diferentes, o que evitaria o deslocamento de exércitos invasores pela malha ferroviária. No novo mundo, data de 1829 a construção de 1.200 km de linha férrea nos EUA. Na América Latina, Cuba inaugura sua primeira linha férrea em 1837.

Simulação do trajeto de linha férrea de Stockton à Darlington, nas comemorações do centenário, em 1925, usando réplica da Locomotion 1.
(Imagem: Head of Steam - Darlington Railway Museum)
A Ferrovia no Brasil
No que se refere especificamente à construção de ferrovias no Brasil, o Governo Imperial consubstanciou na Lei n.º 101, de 31 de outubro de 1835, a concessão, com privilégio pelo prazo de 40 anos, às empresas que se propusessem a construir estradas de ferro, interligando o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia. O incentivo não despertou o interesse desejado pois as perspectivas de lucro não foram consideradas suficientes para atrair investimentos. O grande empreendedor brasileiro, Irineu Evangelista de Souza, mais tarde Barão de Mauá, recebeu em 1852, a concessão do Governo Imperial para a construção e exploração de uma linha férrea, no Rio de Janeiro, entre o Porto de Estrela, situado ao fundo da Baía da Guanabara e a localidade de Raiz da Serra, em direção à cidade de Petrópolis. Entusiasta dos meios de transporte, especialmente das ferrovias, a ele se devem os primeiros trilhos lançados em terra brasileira e a primeira locomotiva denominada “ Baroneza”. A primeira seção, de 14,5 km e bitola de 1,68m, foi inaugurada por D. Pedro II, no dia 30 de abril de 1854. A estação de onde partiu a composição inaugural receberia mais tarde o nome de Barão de Mauá. Ao final do ano de 1873, o Brasil contava com 1.129 km de ferrovias, praticamente o dobro do total de 1867 (598 km). Desse total, quase um terço eram da Companhia D. Pedro II e praticamente todas as demais contavam com garantia de juros dos governos imperial e/ou provincial.
A Ferrovia em Macaé

Estrada de Ferro Macahé e Campos. Planta geral do traçado.
(Fonte: acervo digital da BN)
Antes mesmo do governo imperial abrir concessão para construir ferrovias no Brasil, a partir de 1835, já se discutia, desde fins do século XVIII, a importância de se construir um sistema eficaz para escoamento de gêneros agrícolas em nossa região. Nesta época, se falavam das hidrovias. Para isso, se tentou viabilizar, a partir de 1833, a construção de um grande canal, que ligasse Macaé e Campos, através dos Rios Macaé e Paraíba do Sul. As obras iniciam em 1844 e duram 17 anos. Mas o canal só começa a operar oficialmente em 1872, 3 anos antes de inaugurar um importante trecho ferroviário que falaremos adiante. Aliado a toda essa demora para viabilizar, construir, finalizar, inaugurar e funcionar, este grande empreendimento hidroviário enfrentou vários outros problemas que sentenciaram a sua obsolescência. Seu mérito é ser uma das maiores obras de engenharia do século XIX, o segundo maior canal em extensão no mundo, com seus 109 Km. É patrimônio cultural do Estado do RJ, tombado pelo INEPAC em 2002.
Apesar deste imbróglio, a segunda metade do século XIX foi um período de notáveis transformações quando os avanços na agricultura impulsionaram a navegação de cabotagem e fluvial, além da implantação das primeiras estradas de ferro em Macaé. Seus trilhos cortaram a região atendendo as necessidades de transporte de forma mais rápida e eficaz, influenciando os custos das mercadorias. Em 16 de novembro de 1869, através da lei 1464, é criada a Companhia de Estrada de Ferro Macahé e Campos. Em 3 de Fevereiro de 1870 o contrato para a construção de uma linha férrea entre as cidades de Macaé e Campos dos Goytacazes é celebrado; tendo por complemento uma linha de navegação, sem privilegio, entre o porto de Macaé e a Côrte, localizada no Rio de Janeiro, capital do Império. Em outubro de 1871, com o decreto 4803, a Companhia recebe autorização para iniciar suas obras, o que já começa a acontecer 2 meses depois, em dezembro. Totalizando um pouco mais de 96 Km, o trecho fica pronto em 13 de junho de 1875.
Vale destacar que até os dias de hoje o porto marítimo exerce um papel de relevância na economia macaense, com a movimentação de cargas para a exploração e produção de petróleo na Bacia de Campos. A construção do ancoradouro e das docas, precursores do atual terminal de apoio às plataformas marítimas, foi construído pela Companhia de Estrada de Ferro Macahé e Campos, que se ligava ao porto por um ramal, integrando os sistemas ferroviário e marítimo. O Porto servia para embarque e desembarque dos vapores da Companhia, além de abrigar oficina para os reparos das embarcações e material rodante. Este Porto, no período imperial, chegou a ser o sexto em volume de exportação no país, recebendo riquezas produzidas na região através do Porto do Limão, no Rio Macaé, do canal Campos-Macahé e da Cia. de Estrada de Ferro Macahé e Campos, sucedida pela Cia. Estrada de Ferro Leopoldina, em 1889. Não podemos esquecer que o Porto foi porta de entrada e saída não só de mercadorias, mas do tráfico de homens e mulheres, negros africanos trazidos para serem submetidos ao trabalho escravo nas fazendas da região serrana e em outros distritos.
Depois de um longo processo de expansão, inclusive de aquisição de trechos ferroviários entre o Rio de Janeiro e Campos dos Goytacazes, em 1897, sob a marca da má administração e outros problemas, ocorre a dissolução da Cia. Estrada de Ferro Leopoldina e criada a The Leopoldina Railway Company Ltda., de capital inglês e com alta capacidade de expansão e dominação da malha ferroviária nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Em 1907, a Companhia atinge cerca de 3.086 Km de extensão.
Imbetiba: epicentro econômico e das contradições de classe.
Lugar dos mais apreciados em Macaé, com uma bela enseada - formada por uma pequena reentrância da costa, entre a ponta de Imbetiba e a ponta do Forte, sendo um porto natural. Numa época onde suas areias eram monazíticas e se prolongavam por onde hoje só há asfalto, a Imbetiba sempre foi o epicentro da economia da cidade, através do secular porto que ali funcionava a todo o vapor, literalmente, desde o século XIX. Foi lá também onde, desde o início dos anos de 1880, empreenderam grandes esforços para a instalação de uma alfândega que estivesse à altura da importância do Porto, que só foi inaugurada em 6 de dezembro de 1896. Durou pouquíssimos anos, pois já nascia fadada ao tempo da chegada dos “ingleses de sangue férreo”, para os quais o transporte marítimo macaense, talvez, fosse o último dos interesses.

Vista frontal do edifício da Alfândega, na Imbetiba, já desativado à época. À frente, esquina das avenidas Elias Agostinho e Agenor Caldas.
(Imagem: anos 20/30)
O tempo passou, mudanças continuaram ocorrendo, mas as marcas do passado permanecem ali e hoje os navios que atracam no Terminal Alfandegado de Imbetiba (TAI) servem para movimentar cargas que vão alimentar as plataformas off-shore. Mas apesar das belezas naturais predominantes desse lugar, grandes transformações sócio-econômicas ocorreram com a industrialização promovida pela ferrovia. Como todo grande empreendimento demanda bastante mão-de-obra, o trabalho permanente nas oficinas de Imbetiba acabou formando uma classe operária que, com o tempo, foi amadurecendo sua consciência política, na medida em que a luta prática por melhorias aprimorava a organização da categoria. Nosso episódio de hoje, ao buscar uma relação entre a música e a ferrovia, em Macaé, vai se deparar com muitas situações que a música proporciona em seus encontros: diversão e comunhão. Porém, não podemos deixar de falar outros aspectos da vida social e econômica da cidade. Afinal, as bandas de música centenárias tinham, em sua maior parte, músicos amadores que também exerciam outras profissões. Na Macaé ferroviária, a maioria deles eram empregados das oficinas da Leopoldina e, portanto, são pessoas inseridas num contexto mais amplo do que o meramente artístico, merecendo um olhar múltiplo.
É importante ter em mente que a situação da classe trabalhadora nas oficinas de Imbetiba eram alarmantes. Somado a isso, a Companhia, liderada pelos ingleses, a partir de 1898, cometiam diversas arbitrariedades. Exatamente num dia de 7 de setembro do ano de 1928, o Gazeta de Notícias divulgava graves denúncias feitas pelos ferroviários contra a Leopoldina Railway, o que demonstrava um amadurecimento da luta de classe na época. Dentre as denúncias, vale destacar: 1- em Macaé e outras cidades, as estradas de ferro não correspondiam aos interesses do público; 2- a Cia. tomou posse irregularmente de uma enorme área devoluta no campo do Imburo e vendeu à um ganancioso capitalista que colocou em risco pequenos produtores agrícolas que vivam há décadas naquele lugar; 3- a Cia. construiu na pedreira da Imbetiba um bangalô onde residia o engenheiro da empresa, sendo que a pedreira pertencia à Marinha; 4- há 14 anos a empresa prometia uma estação para a cidade, no lugar do barracão velho, sujo e cheio de ratos. Apesar dos pedidos da associação comercial e das ameaças do povo, nada fez; 5- a empresa também comprou uma parte do porto de Imbetiba prometendo desenvolvê-lo, mas decidiu fechá-lo em benefício de sua estrada de ferro, gerando enorme prejuízo para o município. Percebendo o interesse do povo em reabri-lo, a Leopoldina Railway manda jogar ferro velho em toda a extensão do cais para inutilizá-lo.

Instalações das Oficinas Ferroviárias de Imbetiba, já em processo de decadência.
Imagem: Luiz Claudio Bittencourt (Dunga). Anos 70
4 anos depois, Walter Quaresma, operário da Cia. - e que futuramente veio a se tornar vereador, tendo o mandato cassado em decorrência do golpe civil-militar de 64 - relatava a situação das oficinas de Imbetiba: “No dia primeiro de setembro de 1932, quando fui admitido na ferrovia, na qualidade de aprendiz de ajustador... No interior das oficinas fiquei abismado com a quantidade de caldeiras, locomotivas e outros veículos em reparação, mesmo naquele amontoado de ferro, paus e outros detritos, bem como o cheiro ardente do carvão de pedra e a abundante fumaça das chaminés da oficina. Aquela multidão de homens sujos de graxa, forjas acesas e aquele pandemônio de som, misturados com o barulho e outros sons... Pude me certificar de que a exploração do trabalho humano era brutal. Os ingleses eram patrões desalmados que tinham em mira somente explorar o trabalho brasileiro até a última gota de sangue. Não existia nenhuma lei trabalhista que amparasse o operário, por isso, eles pagavam salários miseráveis. Não havia nas oficinas, qualquer instalação sanitária... A privada era apenas uma vala de cimento, de aproximadamente 30 centímetros de largura, por uns cinco metros de comprimento, onde todos faziam suas necessidades fisiológicas. Não existia água tratada. Era esta acumulada em um depósito que nunca havia sido lavado e também bebia-se nos contêineres das locomotivas. O aprendiz quando admitido, trabalhava três meses de graça. O quarto mês era para caixa de aposentadoria e pensões. Somente do quinto mês em diante ele começava a ganhar 200$ por hora, equivalente a 1$600 por dia... A maioria dos chefes de família moravam nas encostas do Morro do Carvão, de Santana, de Botafogo, Aroeira e à beira do rio, na Barra, em casas sem o menor conforto. O grau de analfabetismo era muito alto. (...)”

Voltando no tempo, no final do século XIX, no alvorecer do ano de 1896 e, portanto, 2 anos antes dos ingleses tomarem a frente dos negócios da Cia., o jornal O Lynce publica grave denúncia, relatando que os operários recebiam seus míseros salários em forma de vales. Além disso, aqueles que pediam desligamento da empresa não conseguiam emprego em outras oficinas, pois recebiam ordens dos chefes da Imbetiba para não empregá-los em outro lugar. A falta de garantias para uma aposentadoria digna e a pouca renda, impediam funcionários antigos de terem uma assistência em casos de doenças, o que ocasionava muitos casos de óbito dessa faixa etária. Por vários momentos na história, os trabalhadores da ferrovia se viram numa situação absolutamente constrangedora que os levavam a agir.
O Lyceu dos Operários de Imbetiba

No início do século XX, enquanto a ferrovia se alastra hegemônica, Macaé vai se destacando no papel de entreposto. Com toda a malha ferroviária completa, entre Rio de Janeiro e Vitória, Macaé se destaca por sua posição geográfica e o arrabalde de Imbetiba se torna um grande polo seccional da Cia. Leopolina Railway. É exatamente na região portuária de Imbetiba onde foram construídas oficinas mecânicas, com calderarias, serrarias, carpintaria, almoxarifados e armazéns de mercadorias em trânsito. Surge também, neste momento, um Lyceu para a instrução primária e secundária dos operários, de seus filhos e tutelados. Fundado em 16 de julho de 1909, sua inauguração se deu 2 anos depois, com uma programação de visitação que se estendeu por todo o mês de agosto. O jornal O Século divulga essa informação em sua edição de 19 de julho de 1911 e publica, na íntegra, o estatuto do Lyceu. Já que nosso assunto é música, destacamos o cap. IX do referido estatuto, que se refere às diversões do Lyceu. Em seu art. 46, diz o seguinte: "Mensalmente haverá seções de litteratura, história poética e artística, pela palavra e na tribuna." Logo em seguida, no parágrafo 1º, diz: "N'essas sessões serão convidadas bandas de música para abrilhantar os actos conferencistas;"
Em 7 de setembro do mesmo ano, o Lyceu encerra oficialmente sua programação de inauguração com uma grande festa e convidados de várias localidades de nossa região. Destacamos aqui, trechos do jornal O Século, de 17/09/1911, referente ao evento: "... às 3 horas da tarde, começavam a chegar à Imbetiba os convidados e às 5 horas toda Macahé já se havia transportado para lá, inclusive as duas bandas de música Nova Aurora e Lyra dos Conspiradores..." "... As bandas de música que passaram a ocupar os artísticos coretos erigidos a entrada do edifício, executaram, alternadamente, boas peças musicais..." "... Houve baile que se prolongou até alta madrugada...". O orador oficial das festividades e também redator-chefe do jornal O Regenerador, Agenor Caldas, em discurso inaugural diz o seguinte: "vimos reunida em Imbetiba o que a sociedade macahense possue de mais fino. E isso causou-nos optima impressão e levou com certesa grande conforto ao animo d'aquela pleiade laboriosa de onde acaba de surgir esse foco de luz rutilante que será a nova aurora da família macahense." É também em 21 de maio de 1914, que um grande passeio ocorre em Macaé: os operários das Oficinas de Imbetiba recebem a visita de seus colegas das Oficinas da Leopoldina de Niterói. À espera dos itinerantes estão as bandas centenárias Lyra e Nova Aurora, juntamente com uma multidão de pessoas. Ao som de um vibrante dobrado, tocado pela Banda do Corpo de Bombeiros de "Nichteroy" (como era escrito o nome da cidade antigamente), foram feitos os cumprimentos ao estilo. Em seguida abrem-se as portas do Lyceu. Entusiásticos discursos são entoados por várias representatividades e toda uma interação prevaleceu entre os convidados.
Como se pode observar, nesse período, a música em Macaé girava em torno das nossas gloriosas Bandas Centenárias. Em toda data comemorativa ou evento específico, lá estavam elas abrilhantando as festas. Mas é neste mesmo ano, de 1914, que marca um momento importante para os ferroviários do Lyceu: a instituição começa a oferecer aulas de música e convida o professor Benício Alves, ex-regente da Banda de Música Lyra Democrática, de Campos. Lá ele leciona aulas de Violão, Violino, Flauta, Bandolim e Piano.

Jornal O Regenerador - Ano 5 - nº 22, de 24/05/1914.
(Fonte: Hemeroteca digital da BN)
Isso nos faz perguntar se o Lyceu permaneceu ou não com as aulas de música e que frutos se colheram no futuro, caso tenha permanecido. Uma outra pergunta seria se, em Macaé, existiu alguma banda de música formada somente por ferroviários. Continuemos...
Ferroviários e a Música
Mário Amaral dos Santos é natural do Rio de Janeiro, nascido no ano de 1898. Desde novo foi morar em Quissamã, exercendo o ofício da carpintaria. Com seus 26 anos e orgulhoso da profissão presenciou, pela primeira vez, a inauguração do novo edifício da Igreja Matriz, onde trabalhou em sua construção. Ainda no quarto distrito, Mário travou conhecimento com algo que jamais deixou de acompanhá-lo: a música. Foi na Banda da veterana União Quissamaense que ele, em 1911, soprou pela primeira vez seu instrumento. Em novembro de 1928 chega à Macaé em busca de melhores condições de vida e exercendo a profissão de carpinteiro que sempre foi, ingressa nas oficinas de Engenharia Mecânica da então Leopoldina Railway, na Imbetiba, onde permaneceu até se aposentar, em 1965. No seu local de trabalho encontrou um grupo de companheiros adeptos da Lyra dos Conspiradores e para lá ele foi com o seu Bombardino, passando a integrar a estante da Banda até 1951. Além de membro da Banda, foi regente por duas vezes, ocupou os cargos de 2º tesoureiro e do Conselho por muitos anos. Por fim, foi também presidente de honra da Lyra, título de mérito que somente os grandes abnegados da sociedade recebem.

Imagem: Revista do Centenário da Lira dos Conspiradores - 1982.
Senai e a Banda Marcial
O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) surgiu da aliança entre o governo do Presidente Getúlio Vargas e a iniciativa privada, no intuito de preparação de mão de obra qualificada para atuação na indústria nacional em pleno movimento desenvolvimentista da década de 1940. Em 1945, o Lyceu dos Operários de Imbetiba deixou de existir, sendo substituído pela Escola Profissional Ferroviária (SENAI), e depois, Centro de Formação Profissional de Macaé.
Jorge Costa de Macedo é músico, clarinetista e saxofonista. Nasceu em Santa Maria Madalena e veio para Macaé aos 4 anos de idade e sempre residiu no bairro Imbetiba. Foi regente da Banda Marcial do Senai, na década de 70 e maestro da Banda da SMB Lyra dos Conspiradores, na década de 80. Com seus 84 anos de vida, carrega grandes lembranças de seus estudos técnicos, no Senai, e musicais, na Lyra. Ele nos lembra de que maneira surgiu a Banda Marcial do Senai:

Jorge: essa Banda era um cara que tocava sozinho. Era da Escola de São Domingos, em Conceição [de Macabú]. Era um só. Ele fazia os dobrados e tocava. Ele que representava a "Banda". A Banda vem mesmo com Celso, pistonista da Lyra.
Magno: ele foi convidado pelo Senai para montar a Banda Marcial?
Jorge: não, era do Senai mesmo. Ele era professor do Senai, Celso Passos. E Wilson Santos, que dirigia a Escola.
Magno: então, a Banda Marcial do Senai surgiu pelo fato de, lá dentro, terem professores que também eram músicos da Lyra...
Jorge: a Banda surgiu do nada. Um cara não tinha o Conjunto formado de músicos, não. Era apenas uma pessoa que saía e tocava "paparapapá..." ele tinha o hino, tocava o hino e desfilava. Depois, com Celso e Wilson, é que começou a formar a Banda Marcial do Senai.
Francarlos: existia até um hino do Senai - não sei se aqui era cantado - a gente lá [Cachoeira de Macacú] era obrigado a cantar toda vez que tinha algum evento...
"Os alunos do Senai
tem o nobre dever
para a nossa sabedoria
estudar até vencer
se a pátria precisar
de um aluno varonil
nas escolas do Senai
há de encontrar
sempre alerta, Brasil!!"
Jorge: esse hino não é do meu tempo tomando conta da Banda, não. O nosso era o "Hino do Aprendiz".
Francarlos: esse hino a gente cantava toda vez que havia algum evento na cidade, que a Banda fosse desfilar, a Banda se prostrava, tocava baixinho e todo mundo cantava isso. Década de 60. Cada Senai tinha um hino próprio...
Jorge: o Hino do Aprendiz, a gente cantava ou assobiava. Aí já era com o hino de Macaé. Tonito.

Letra do Hino do Aprendiz, cantado pelos alunos do Senai de Macaé. nos anos 60 e 70. Imagem: manuscrito escrito pelo próprio Celso Passos, hoje com 82 anos e residente em Itapema-SC. Celso foi um dos professores que fundou, junto à Wilson Santos, a Banda Marcial do Senai.
(Créditos de imagem: Felipe Passos)
Magno: você também regeu a Banda do Senai?
Jorge: o auge dela foi comigo. Todas as cornetas eu tirei porque desafinava. Não combinava Corneta com Clarim. Tirei a Corneta e deixei só Clarim no final, pelas curvas...
Francarlos: a Corneta, para afinar, era muito difícil. Clarim era mais fácil trabalhar por causa do agudo, né?
Jorge: aí ficava tocando somente o Dobrado da Corneta sozinha. Aí depois entrava a Banda completa.
"A partir deste ano, já às portas, você não verá passar pelas ruas, a pé ou de bicicleta, indo para a Imbetiba ou desta vindo para suas residências. Você não mais os verá, sozinhos ou em grupos, no macacão de mescla azul das atividades de oficinas, limpo e passadinho nas manhãs de segunda-feira, sujo de óleo, graxa ou serragem no fim da semana, estalando de novo em fevereiro, ralo e desbotado em dezembro. Como não mais irá vê-los no uniforme das aulas teóricas, nascido do bege e azul marinho com a Escola Profissional Ferroviária 8-1-SENAI-Leopoldina, passando a totalmente cáqui quando Escola Ferroviária de Imbetiba e que agonizou azul marinho e branco com o Centro de Formação Profissional de Macaé. Pois todos esses nomes tiveram aquela que o macaense sempre preferiu, afetuosamente, chamar Escola do Senai. Como também não mais os irá ver no imaculado uniforme branco de 32 anos de desfiles pelas ruas nossas nas datas festivas, pelotões puxados pela Banda Marcial tão apreciada e querida". (Parada, Antonio Alvares. "Os meninos do Senai" - crônica publicada no jornal O Debate. Anos 70)

Jorge (de terno, à direita) quando regente da Banda Marcial do Senai, em evento realizado na Central do Brasil. Por volta de 1975.
(Imagem: página do Facebook - "Paulo Patrocínio")
"Juca" Brilhantino e o Pinho de Riga
Conversamos com Gernandes Mota. Ele nos revela um fato interessante sobre seu pentavô, conhecido como Juca Brilhantino, carpinteiro que veio do Rio de Janeiro trabalhar na Cia. de Estrada de Ferro Macahé e Campos, nos primeiros anos de funcionamento da nova linha férrea...

Gernandes: esse meu avô, José Brilhantino Fernandes de Aguiar, "Juca" Brilhantino, ele veio do Rio para trabalhar na manutenção dos vagões de trem. Ele era especializado em fazer isso. Foi logo quando começou a ferrovia em Macaé. Era membro da "Perseverança", maçonaria. Isso tudo foi passado de forma oral pra família, minha bisavó e minha avó contavam isso, eu ouvia muito delas. Essa história, depois, eu fui conversando com algumas pessoas e fui reconstruindo, o que era fato, o que era só estória… enfim, a Nova Aurora foi construída por uma equipe de pessoas ligadas à música, mas também à ferrovia. Essa turma que veio do Rio para construir a ferrovia, eles montaram a banda, se juntaram com a turma daqui e começaram a montar a Nova Aurora, a organização musical. E a construção do prédio, esse meu pentavô teve envolvimento direto e participou desse projeto da construção. E uma prova técnica do que foi feito pelo pessoal da ferrovia é que todas as portas, todas as madeiras, vinham do Pinho de Riga. É uma madeira que vinha da Inglaterra, mas é polonesa. Até hoje a gente vê resquícios dessas madeiras, mas as portas, os materiais são da ferrovia. Isso ficou bem registrado porque esse meu pentavô trabalhou. No telhado, inclusive, se não me engano, era de Pinho de Riga. A requisição da madeira foi feita por ele (Juca), pediu tudo em Pinho de Riga.
Outro detalhe interessante: já havia o movimento abolicionista nessa época, da construção da Nova Aurora. E o pessoal da maçonaria - e esse meu avô fazia parte disso - eles tinham, por hábito, de comprar escravos, alforriavam e liberavam eles. Davam alforria para que eles trabalhassem por conta, davam ofício… E nessa brincadeira, existia um grupo de lideranças dentro da Nova Aurora que era a favor da escravidão. E o que ocorreu é que o grupo que era a favor da abolição da escravatura - inclusive eu acredito que tinham pardos e negros entre os funcionários que ajudaram a construir o prédio - eles "conspiraram" contra a Nova Aurora e fundaram uma outra sociedade musical, que foi a Lyra dos Conspiradores. E aí eles pegaram o mesmo gás da construção da Nova Aurora e fizeram o prédio da Lyra. A data é muito próxima e a fundação também. E o que aconteceu? Esse meu avô Juca, parece que teve um desentendimento com a equipe lá da obra, porque ele queria fazer o projeto do telhado parecido com o da Nova Aurora, que tem 4 águas, e a equipe queria fazer sem água nenhuma. Resultado: o telhado da Lyra tem problema até hoje, porque a água corre no meio. Esse é um outro detalhe que cabe registrar.

Lançamento da pedra fundamental da Igreja Santo Antônio de Glicério, distrito conhecido, à época, por Crubixais (do Tupi "Rio dos Seixos"). No centro da foto (atrás de quem segura o papel) se encontra "Juca" Brilhantino. Ano: 1911/12.
(Imagem: Facebook "Famílias Italianas da Serra Fluminense")
Eu não sei se o Juca tocava algum instrumento musical, mas ele fazia parte e estava ali de alguma forma. Isso é um registro que está ligado à ferrovia. O Juca depois juntou uma grana e comprou um sítio em Trapiche, chamado "São José da Boa Vista", e foi produzir café lá na região serrana. Tem uma foto dele inaugurando a pedra fundamental da construção da Igreja Santo Antônio de Glicério. Ele é figura central da foto, já idoso. A foto é de 1911/12. Ele faleceu em 1913. A construção da igreja terminou em 1925, se não me engano. Então, tudo ligado à ferrovia, né. Glicério evolui. Ele comprou o sítio em Trapiche porque ele acreditava que a ferrovia em Glicério ia puxar café pra fora do Brasil, inclusive. Ele acreditou que ia progredir muito, que ia dar certo. Por isso ele se mudou pro interior. Ele acreditou na história da ferrovia, veio à Macaé em função dessa crença, desse progresso. Acreditou no progresso do café, acreditou nas sociedades musicais, acreditou na maçonaria. Morreu nisso, dentro da instituição (maçonaria). Esses são alguns registros que tenho.
Agradecimentos: ao maestro Jorge Macedo, por nos receber em sua casa e nos prestar alguns esclarecimentos sobre sua trajetória artística. E também a sua companheira Edilce. Não esquecendo de mencionar que seguimos todos os protocolos de segurança sanitária, mesmo vacinados; ao Gernandes Mota, por nos contar a rica história de seu pentavô; e também ao professor Celso Passos que, por intermédio de seu sobrinho Felipe Passos, nos enviou, lá de Itapema-SC, a letra do Hino do Aprendiz, do Senai Macaé. Sinal de que suas lembranças ainda se mantém muito vivas, graças aos bons momentos que lá passou.
Considerações finais:
É isso, meus amigos. Estamos chegando ao final de mais um episódio. Vimos que a Lyra dos Conspiradores, por seu histórico, acabou abraçando os ferroviários, que já tinham um contato com a música ou que, por algum outro motivo, vieram a despertar o interesse por ela, indo ao encontro daquele lugar que, outrora, enfrentou o velho poder escravocrata. Outra coisa é que o Lyceu dos Operários de Imbetiba, na década de 10 do século passado, apesar de ter oferecido aulas de música, não parece ter avançado a tal ponto de montar alguma banda dentro de suas instalações. Até onde sabemos, foi através do Senai, a partir dos anos 50, que um projeto de Banda Marcial foi pensado, vindo a se concretizar alguns anos depois, de acordo com as palavras do maestro Jorge Macedo. E para não dizer que tudo está acabado, hoje Macaé se orgulha de ter a Banda Marcial dos Veteranos, formada por amigos que, nos anos 60 e 70, foram alunos de várias escolas, dentre elas, o Senai. Então é isso, pessoal, espero que tenham gostado deste episódio, lembrando que a imagem do manuscrito da letra do Hino do aprendiz, assim como as referências de consulta e o fundo musical, se encontram na página do blog referente a este episódio. E fechando com chave de ouro, a música "Imbetiba", do músico e poeta macaense Wallace Manuel. Até breve e um grande abraço!!
Referências de consulta
Carvalho, Meynardo Rocha de. Memórias ferroviárias e ditadura civil-militar: identidade de classe, poder e esquecimento em Macaé/ Meynardo Rocha de Carvalho. Macaé, RJ, 2020;
Carvalho, Meynardo Rocha (org.). Comércio & Prosperidade: Memórias, textos e documentos - Centenário da Associação Comercial e Industrial de Macaé. Macaé. Grafitusa. 2016;
Revista do Centenário da Lira dos Conspiradores - 1882/1982.
AENFER - Órgão de divulgação da Associação de Engenheiros Ferroviários. Disponível em: http://www.ferrovias.com.br/portal/blog/ Acesso em: 22 ago. 2021;
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional;
O transporte ferroviário no Estado do Rio de Janeiro. Inepac; Disponível em: http://www.inepac.rj.gov.br/application/assets/img/site/3_o_transporte_ferroviario_no_est_do_rio_de_janeiro.pdf Acesso em: 21 ago. 2021;
Ferrovia - Histórico. Disponível em: http://www1.dnit.gov.br/ferrovias/historico.asp Acesso em: 12 ago. 2021;
AENFER - Estação Barão de Mauá. Disponível em: http://www.ferrovias.com.br/portal/estacao-barao-de-maua-90-anos-de-historia-2/ Acesso em: 12 ago. 2021;
Portal de Legislação. Decreto nº 4803 de 18/10/1871 / PE - Poder Executivo Federal. Disponível em: https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/192059-concede-u-companhia-estrada-de-ferro-de-macahu-e-campos-autorizauuo-para-funccionar-e-approva-seus-estatutos.html Acesso em: 15 ago. 2021;
De Canal Campos-Macaé à Beira-Valão. Disponível em: https://www.ururau.com.br/podcast/aqui-tem-historia/de-canal-campos-macae-a-beira-valao/466/ Acesso em: 17 ago. 2021;
Canal Campos-Macaé 1. Disponível em: http://www.inepac.rj.gov.br/index.php/bens_tombados/detalhar/76. Acesso em: 17 ago. 2021;
Fundo Musical:
Abertura: Minas/Ponta de Areia, do disco "Último Trem", de Milton Nascimento, gravado em 1980, porém relançado em 2004 em CD duplo, junto com "Maria Maria", pelo selo "Far Out Recordings";
Bachianas Brasileiras No. 2 - Toccata (O Trenzinho Do Caipira), de H. Villa Lobos. Executada pela Royal Philarmonic Orchestra, sob a regência de Enrique Arturo Diemecke. 2009;
Último trem, de Milton Nascimento. Do disco "Último Trem", gravado em 1980, porém relançado em 2004 em CD duplo, junto com "Maria Maria", pelo selo "Far Out Recordings";
Dobrado Dr. Carlos Gerk, de .... Gravado pela Banda Sinfônica Nova Aurora no estúdio da Rádio Mec, em junho de 2011, em participação do projeto "Som das Bandas - Balançando o Coreto";
Dobrado Professor Celso Woltzenlogel, de Joaquim Naegele;
Banda Marcial dos Veteranos de Macaé. Ensaio na quadra do antigo Colégio Caetano Dias e registrado em vídeo por Luiz Claudio Bittencourt (Dunga) em seu canal do Youtube. 19/10/2013;
Imbetiba, música e letra de Wallace Manuel. Postagem no Youtube em 16/08/2015;
FIM.